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As palavras em família "NÃO HÁ PALAVRA MAL DITA SE NÃO FOR MAL ENTENDIDA"

"Já dizia a minha avó" é uma expressão que vulgarmente nos acompanha. Por este ou por aquele motivo, todos temos uma frase que guardamos na memória, seja pelo número de vezes que nos foi dita ou pelo eco que fez dentro de nós. Há expressões que utilizamos que nos serviram e servem de estímulo e outras que funcionam como um bloqueio.


É no seio familiar que a criança aprende e apreende as palavras e os seus vários significados e aquilo que vamos ouvindo pela vida fora pode marcar-nos profundamente. Tanto é que são inúmeras as vezes que somos chamados à atenção para medir as nossas palavras, pois uma vez ditas produzem os seus efeitos. "Uma palavra que te escapa é uma espada que te ameaça" é apenas mais uma maneira popular de nos relembrar que "pela boca morre o peixe" e que aquilo que dizemos tem efeito nos outros.


Mas afinal qual é, efectivamente, a importância das palavras e da sua utilização para o desenvolvimento de uma criança? Poderemos traumatizar os mais pequenos com aquilo que dizemos? Bastará isso para os influenciar? O que acontece, por exemplo, quando as palavras não são acompanhadas pelos actos – surtem algum efeito? E qual a importância do culto da palavra no seio familiar?


Vasco Catarino Soares, psicoterapeuta e director da Insight-Psicologia, refere que a importância da palavra reside no facto de ela ser "fundamental para o desenvolvimento infantil. A palavra veicula ideias, desejos, sentimentos, questões. Em suma, é a forma que nos permite o relacionamento uns com os outros. É no seio da família que a criança vai aprender e apreender o mundo e, dessa forma, a palavra que existe na família vai ser a que lhe vai servir de referência". Para além da palavra que é dita, Laura Pimpão, psicóloga, reforça que é muito importante o modo como é dita. "As crianças aprendem não apenas por aquilo que aqueles que lhes são significativos dizem, mas pela forma como o dizem e pela maneira de se relacionarem com elas. O que se diz, a forma como se diz e o contexto em que se diz determinam, em parte, os limites psicológicos e sociais." E, continua, a palavra vai constituir a base das relações sociais, pois "permite a interacção do sujeito com o meio ambiente, sendo que o contacto com vários modelos e o confronto que se estabelece vai conduzir a um alargamento das perspectivas acerca da vida e dos outros".


Podemos ver que a palavra e a linguagem actuam directamente ao nível da construção do eu pessoal e social da criança, daí a sua importância. Obviamente, as palavras, não sendo acompanhadas por actos correspondentes, perdem a sua força. Vasco Soares afirma que "entre a palavra e os actos (quando se contrariam), os actos têm sempre uma maior valoração. A criança, perante o dilema de um discurso que advoga determinados comportamentos e os actos que a família exibe, vai considerar como exemplo os actos". Para quem crê na máxima de que às crianças cabe apenas obedecer a ordens sem questionar, Laura Pimpão deixa um alerta: "Fomentar a palavra, o diálogo, enfim, o pensamento e o autoconhecimento, ajuda-nos a aprender a colocarmo-nos no “lugar do outro”. Isto se a palavra se faz acompanhar, obviamente, de comportamentos sintónicos com a mensagem que a palavra pretende transmitir. A máxima “faz o que eu digo e não faças o que eu faço” parece não se aplicar a este conceito de partilha, reciprocidade, crescimento e autonomia."

O culto da palavra em família
Quando falamos no poder da palavra, não nos queremos referir apenas ao diálogo ou àquela "conversa de pé de orelha" entre pais e filhos quando é necessário sentar à mesa para esclarecer algum assunto, mas a tudo o que é dito, muitas vezes sem uma intenção clara. "De facto, há palavras que geram “mau-trato”, que “deitam abaixo” que “dilaceram”… Por outro lado, a prática do uso de palavras emocionais, positivas, que ajudam a construir a pessoa percepcionando-se com valor, ajuda a criar um ambiente seguro, onde a criança sinta que pode dizer o que sente, incluindo as emoções negativas (tristeza, medo, raiva…)", reforça a psicóloga.


Tomemos alguns exemplos como a repetição de ideias ou até ditados populares utilizados com frequência; ambos podem funcionar de forma positiva ou negativa. Ouvir repetidamente palavras de incentivo pode ser motivador, da mesma forma que ouvir palavras de recriminação pode ser demolidor. "Se me disserem repetidamente “és um desastre, não fazes nada bem… só me dás desgostos…”, será certamente muito diferente do que se me disserem “não está bem aquilo que fizeste, estou magoado, mas acredito que tens capacidade para fazer melhor / mudar. Estou desapontado com o teu erro, mas continuo a gostar muito de ti…”", exemplifica Laura Pimpão. Para além disso, a repetição pode funcionar como um anti-reforço, acrescenta Vasco Soares, surtindo o efeito contrário ao que se quer enfatizar. E esclarece: "Está estudado que a informação redundante pode ser cansativa e aversiva, pois transmite à criança que não confiam nas suas capacidades (Já ouvi! Já me disseste várias vezes! Não sou surdo! Não sou estúpido, percebi da primeira vez)."


Algo tão "inofensivo" como um ditado popular pode acompanhar o desenvolvimento cognitivo de uma criança, transformando-se numa verdade. "O que os ditados populares têm de positivo é facilitar a compreensão, em traços gerais, de determinado assunto (a musiquinha que os acompanha facilita a memorização). Mas o que é positivo tem igual peso negativo. A realidade e os acontecimentos relatados nos ditados populares nem sempre são tão simples como lá vêm descritos. Deste modo, uma explicação correcta desses acontecimentos é preferível a uma generalização. São as generalizações que levam à formação de estereótipos", afirma Vasco Soares.

Também Laura Pimpão veicula esta perspectiva, acrescentando que o perigo dos provérbios é "serem conclusivos" e extremados na ideia de bom e mau. "Os provérbios têm endereços bem definidos: acusando, definindo, defendendo, consolando, propiciam ao ouvinte um carácter sábio, analítico e, acima de tudo, são conclusivos. É importante, pois, considerarmos que os provérbios, isoladamente e quando mal interpretados, podem também ser perigosos, induzir ao erro, distorcer situações, justificar vícios ou encorajar maus costumes. Precisamente por serem conclusivos, podem ajudar a que a criança não desenvolva a capacidade de pensar os pensamentos, como se de uma sentença se tratasse, trancando-a nas amarras da culpabilidade e da frustração, por não conseguir atingir essa conduta inacessível que só os “bons” contrastando com os “maus” conseguem."


Rita Bruno