Os lápis na mão de uma criança não é um mero entretenimento. Os desenhos infantis revelam muito sobre o seu mundo. A psicologia usa-os em testes de avaliação psicológica e como instrumento terapêutico. Através do desenho, as crianças desenvolvem a atenção e a capacidade criativa, mas também exprimem traços de personalidade, emoções contidas, receios silenciados, conflitos familiares... É preciso estar atento e "ouvir" o desenho. Sem recriminações.
Desinteresse "Somos uma país que desenha pouco.
Desvalorizamos o desenho, achamos que isso é coisa de miúdos."
Sara, 12 anos, quer ser desenhista, só sonha ter uma profissão com lápis na mão: "Adoro desenhar, pegar no lápis e ver as figuras aparecer, é quase mágico, os meus colegas estão sempre a pedir que invente personagens para eles." Os cadernos da escola estão "cheios de cabeças de cavalo junto ao número das lições", diz sorridente, com o seu cabelo aos caracóis. "Ando sempre a ver se posso desenhar, as coisas surgem-me na cabeça e a minha mão começa a mandar em mim." Desenha cavalos, ninfas, fadas, princesas... mas também cria personagens inspiradas na famosa mascote do videojogo Sonic para oferecer aos colegas da escola. "Ela ainda não tinha um ano e já fazia círculos e bolinhas, nunca chegou a rabiscar as folhas todas, como faziam os outros bebés", conta a mãe, orgulhosa do "jeito natural" da filha para a arte.
"A maioria das crianças desiste de desenhar, se não for antes, quando chega à adolescência", constata a psicóloga Celina Almeida, directora da Clínica Insight e formadora na área do desenho infantil: "Só as que são muito incentivadas e as que têm mais apetência é que continuam a desenhar, as outras vão desistindo." Porquê? "Tendemos a desvalorizar o desenho, somos um país que desenha pouco, grande parte de nós diz, de imediato que não tem jeito para desenhar, isso é coisa de miúdos. Preferimos inscrever uma criança com quatro anos em aulas de informática ou de inglês do que em actividades como a pintura e a dramatização, que são mais indicadas para a idade pré-escolar", comenta Celina Almeida. "Muitos pais e professores não se apercebem da importância e das diferentes etapas do desenho infantil e com os seus comentários e reparos contribuem para que as crianças se sintam frustradas e percam o gosto por desenhar."
Da descoberta à imitação
No início é a descoberta: "A criança pega no lápis como em qualquer objecto para explorar. Mas aquele objecto causa-lhe surpresa: com ele, a criança consegue reproduzir algo, faz um rabisco, deixa uma marca numa superfície, na folha de papel ou noutro sítio qualquer." O lápis produz um efeito inesperado, vai querer repetir. É a chamada fase dos rabiscos, tecnicamente referida como realismo fortuito.
"Nesta altura há sobretudo um prazer motor, é uma coisa quase mágica, a caneta produz um efeito. E há uma grande vontade em ser capaz de controlar o objecto que faz aquelas magias, aqueles traços, que ao principio são muito juntos e sobrepostos, e depois mais separados e ritmados, com adição de pontinhos e linhas curvas. Ainda não são propriamente desenhos, mas rabiscos, grafismos, automatismos", explica a psicóloga Celina Almeida: "as crianças, de um modo geral, vêem os adultos ou até os irmãos mais velhos a escrever e sentem vontade de imitar. Às vezes até dizem que estão a fazer escritos ou a escrever o nome..." Por volta dos três anos é muito frequente gostarem de oferecer desenhos, com um rabisco no canto da folha como assinatura ou como uma suposta dedicatória para a pessoa. O desenho começa a tomar forma e a servir como meio de comunicação.
"Aos três anos, ou mais cedo ainda como acontece com muitas crianças, já existe claramente o intuito de desenhar alguma coisa, de representar a realidade, de reproduzir algo que ela conhece ou que faz parte dos eu imaginário: um cão, uma casa, uma fada." É a chamada fase do realismo falhado, em que a criança se esforça por dominar o lápis e transformar um rabisco numa figura identificável. Aí pode começar a surgir a frustração, adverte a psicoterapeuta: "As crianças têm uma capacidade muito grande em encontrar semelhanças entre um rabisco e um objecto, e podem ficar frustradas se nós não descortinamos o que está lá. Uma linha curva feita ao acaso é um caracol ou outro animal qualquer... nós é que não vemos o que eles vêem." É preciso evitar comentários depreciativos: "Algumas crianças desenham até à exaustão a mesma coisa, na tentativa de encontrar semelhanças com a realidade." Exercitando a mão, vão desenvolvendo a capacidade de atenção e a memória.
Do entusiasmo à frustração
Pegam numa folha, numa caneta de feltro à sorte e fazem um desenho que, para elas , é claro e óbvio e mostram-no ao adulto. E o que é que ouvem? "Então pintaste tudo da mesma cor? Oh, isto é que é? Esqueceste-te de desenhar as pernas! Olha que o coração não se vê por fora da roupa!", etc. As crianças precisam de ser valorizadas por aquilo que fazem. "Os pais e os professores não devem esperar ou exigir mais do que aquilo que a criança pode fazer e que é próprio para a sua idade", adverte Celina Almeida: "A rigidez estética dos adultos é que não faz sentido! É errado dizer-se a uma criança pequena que o desenho não está bonito porque falta pormenor ou porque as cores não combinam! É o mesmo que pedir a uma criança de três anos que se vista sozinha, ela não vai ter a preocupação de combinar as cores porque nesta fase isso não tem qualquer importância nem os padrões estéticos dela são os mesmos que os nossos."
Uma cara pintada de azul, uma árvore roxa, um cão cor-de-rosa, porque não? Uma mão com dezenas de dedos, os pés ligados à cabeça, os botões fora do casaco, uma flor maior que uma casa, uma chaminé na posição horizontal... É assim mesmo, não há nada de errado ou a corrigir. "Para elas o desenho é bonito assim. Há estudos comparativos curiosos que mostram que as crianças preferem desenhos, por exemplo, da figura humana, feitos por crianças da mesma faixa etária ou um pouco mais velhas do que desenhos feitos por adultos que, evidentemente, são muito mais elaborados." Para elas o desenho é bonito, mesmo que aos nossos olhos pareça arcaico. "Primeiro é preciso aceitar, valorizar, enquadrar e compreender o desenho naquela faixa etária.
Com o tempo podemos dar sugestões mas não como reacção imediata." Na idade pré-escolar a criança ainda não domina a cor, a dimensão, a perspectiva.